Lei de Falências e Recuperação Judicial passa por análise minuciosa para reformulação
Reportagem do JC
Mais de uma década depois de entrar em vigor, a Lei de Falências e Recuperação Judicial (Lei nº 11.101/2005) deve ser mais uma das legislações prestes a passar por reforma. Ao longo dos anos, a ferramenta ganhou popularidade entre empresários e se tornou uma importante aliada na difícil tarefa de contornar as dificuldades financeiras e evitar o fechamento das portas, principalmente desde 2015. Entre as principais alterações deve constar a possibilidade de inclusão de dívidas com garantia de alienação fiduciária, a introdução de um programa especial de parcelamento de débitos tributários e a criação de varas judiciais regionais especializadas no assunto.
O acirramento da recessão econômica vivida no País prejudicou a geração de caixa das empresas. Por outro lado, as empresas também se depararam com o crédito caro e escasso. A saída para um número grande de empresários foi entrar com um pedido de recuperação judicial – processo capaz de travar a cobranças das dívidas da empresa, abrir negociação com os credores e evitar o fechamento das portas.
De acordo com Indicador Serasa Experian de Falências e Recuperações, em 2016, foram requeridos 1.863 pedidos de recuperações judiciais, 44,8% a mais do que o registrado em 2015. O resultado é o maior para o acumulado do ano desde 2006, após a entrada em vigor da lei em junho de 2005. Em 2015, foram 1.287 ocorrências contra 828 em 2014.
As taxas de sucesso geralmente são baixas, porém, nem sempre por que as empresas não têm condições de contornar o processo de falência. Uma causa comum, diz o advogado Thomas Dulac Müller, do escritório Dullac Müller Advogados, é a demora em ingressar com o pedido de recuperação judicial. O Brasil é um dos países de cultura íbero-ocidental e de matriz religiosa cristã em que dever é um pecado.
Por isso, os empresários resistem em ingressar com o pedido e quando o fazem pode ser tarde demais. “Fui consultado por inúmeros empresários cujo remédio para a empresa seria ingressar com o pedido e a reunião acabava quando eu sugeria. A recuperação aumenta ou diminui conforme o agravamento da situação econômica. O grande problema é que mesmo havendo a tomada de decisão ela é sempre atrasada”, pondera Müller.
Mesmo sendo um dos artifícios mais utilizados pelos empresários em dificuldades econômicas ultimamente, a modernização na matéria vem sendo debatida há algum tempo. O primeiro resultado da pressão exercida por especialistas e empresários para que houvesse uma mudança na lei veio em 2014, com a aprovação da Lei Complementar nº 147, que, entre outras coisas, incluiu os credores que são micro e pequenas empresas de pequeno porte à lista de entidades que podem ser incluídas no rol de credores cuja dívida poderá ser negociada dentro do processo de recuperação judicial. Além desta, há outras três classes: classe trabalhista, onde entram todos os débitos de origem trabalhista e dívidas com empregados; classe de credores com algum tipo de garantia real; classe de credores sem garantia real, exceto aval e nota promissória.
Uma das principais alterações deve ser solucionada com a inclusão de mais uma classe a estas quatro, de credores que detém alienação fiduciária como garantia, projeta o economista e CEO da consultoria de empresas especializada em gerenciamento estratégico Siegen, Fábio Astrauskas.
Atualmente, a maior parte dos empréstimos utilizados são garantidos através de alienação fiduciária. “Isso quer dizer que quando uma empresa entra em recuperação judicial a maior parte das dívidas fica de fora”, reflete Astrauskas. Atualmente, a grande maioria dos créditos contraídos em instituições financeiras são garantidos por alienações fiduciárias. “Poderia afirmar que mais de 70% das operações financeiras possuem a garantia de alienações fiduciárias. E isso, de 2005 para cá, só aumentou”, afirma Müller, ao explicar que, hoje, ao ingressar com uma recuperação judicial e contratar um advogado, a grande preocupação do empresário é que uma imensa maioria dos créditos não estão sujeitos à recuperação. Ainda assim, os empresários aderem ao processo para barrar a discussão das demais dívidas. “Algumas vezes a recuperação judicial serve mais para se proteger. Os tribunais acabam entendendo que ainda que o crédito seja garantido por alienação fiduciária e, portanto, não se sujeitar a recuperação, o credor não pode executar o bem”, lembra o especialista.
Contudo, complementa Müller, “o credor não pode negociar com o empresário no ambiente da recuperação”. “Vai se criando um ambiente que não satisfaz nem gregos nem troianos. Criou-se uma situação tão calamitosa, do ponto de vista conceitual, que o banco já não sabe mais se a alienação fiduciária é uma garantia consistente e o devedor também não sabe se a alienação possui eficácia”, descreve.
Esta e outras mudanças estão sendo debatidas desde o final de 2016 no âmbito do Ministério da Fazenda através de um Grupo de Trabalho (GT). Instituído através da Portaria nº 467 do Ministério da Fazenda, o grupo tem a finalidade de estudar, consolidar e propor medidas voltadas ao aprimoramento da Lei nº 11.101 e de outros instrumentos legais associados aos temas recuperação e falência de empresas.
Quais os principais benefícios da recuperação judicial
Proteção aos ativos do devedor. Os credores ficam impossibilitados de atingir o patrimônio, como execuções, ações de qualquer natureza e até mesmo alienações fiduciárias. Isso protege também os ativos imobiliários, o que não ocorre em um ambiente normal de negociação;
Negociação bilateral dos débitos. Os credores são atraídos à mesa de negociações bilateral;
Negociação facilitada sem a necessidade de decisão unânime de todos os credores. A mesa de negociações não precisa contar com a integralidade dos credores, mas com a maioria (50% mais 1). Os demais credores se submetem aos efeitos da negociação.
Parcelamento e varas judiciais especializadas são inclusões necessárias à modernização
As outras duas questões que mais merecem atenção, dizem os especialistas, são a criação de um programa especial de parcelamento de débitos tributários e a criação de varas judiciais regionais especializadas no assunto – a exemplo do que já existe em São Paulo e Rio de Janeiro.
A criação de varas especiais não é necessariamente uma modificação dentro da lei, mas no processo. “Isso tem de estar previsto dentro da regulamentação da Lei de Responsabilidade do Poder Judiciário. A lei não diz que vai para uma vara especial, mas em outra instância deve constar”, ressalta o economista e CEO da consultoria de empresas especializada em gerenciamento estratégico Siegen, Fábio Astrauskas.
“Outro ponto importante é a familiaridade dos juízes na vara especializadas. Assim as sentenças podem ter maior aplicabilidade”, projeta Astrauskas. As varas especializadas devem ser responsáveis por realização de uma perícia prévia da situação empresarial antes de o tribunal levar o processo adiante.
Já o parcelamento especial de dívida tributária deve ser uma demanda apresentada pelo grupo de trabalho dedicado à análise da atual legislação. Conforme Astrauskas, essa questão não foi resolvida satisfatoriamente até hoje dentro da lei. “Primeiro, ficou muito tempo sem ter o parcelamento especial de dívida tributária. Quando aconteceu, há três anos, a regulamentação foi ruim, porque foi feita às pressas, via medida provisória, que acabou concedendo um parcelamento especial muito curto, de 84 meses apenas”, recorda o advogado.
Para o especialista, o programa deve contar com prazo maior e algum tipo de deságio nas multas a fim de realmente possibilitar que os empresários paguem os débitos, se recuperem e façam a compensação de prejuízos. “O justo seria que ela pudesse pedir o parcelamento de débitos e, para isso, usasse o prejuízo fiscal para poder fazer a compensação. Este é um ponto importante também”, pontua Astrauskas.
Norma está defasada
O primeiro texto dedicado aos ritos para a declaração de falência e efeitos à pessoa do falido, entre outros pontos, foi o Decreto-Lei nº 7.661, de 1945. Responsável por disciplinar durante 60 anos o processo falimentar no Brasil, o texto foi substituído pela a Lei nº 11.101, que, segundo especialistas, já apresentava falhas desde a entrada em vigor, em 2005.
Chamada também de Nova Lei de Falências, o projeto tramitou durante 11 anos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal até sua aprovação e consequente publicação em forma de lei. Devido à demora em produzir efeito e pela já comum queda de braço entre os setores interessados, explicam especialistas, a lei nasceu fadada a ter de passar por alterações em pouco tempo. Isto, somado às enormes mudanças no ambiente empresarial brasileiro, macroeconômico e jurídico ocorridas nos últimos 12 anos, fez com que a lei chegasse ao patamar atual, em dissonância com as necessidades dos empresários.
“A lei anterior, de 1945, excluía do seu tratamento os créditos hipotecários e trabalhistas. A Lei de Falências e Recuperação Judicial, quando entrou em vigor, trouxe para dentro da sua cobertura as dívidas trabalhistas e hipotecárias, mas excluiu da sua abordagem a categoria de créditos com alienação fiduciária”, lembra o advogado Thomas Dulac Müller, do escritório Dullac Müller Advogados. A modalidade de crédito com alienação fiduciária representa a grande maioria dos créditos contraídos em instituições financeiras. “Poderia afirmar que a gente beira mais de 70% das operações financeiras que possuem a garantia de alienações fiduciárias, e isso de 2005 pra cá só aumentou.
“Se até 2005 havia um cenário em que nem todos os créditos eram garantidos por alienação, posso afirmar que hoje em torno de 70% são”, diz Müller. Para ele, “a alienação fiduciária é a hipoteca de ontem”, e a lei não tem como ignorar uma enorme parcela de empresários que não têm suas dívidas incluídas no processo de recuperação.
Fonte: Jornal do Comércio
Roberta Mello
03 maio de 2017