Tribunais podem não dar conta de demandas de recuperação judicial
Com o agravamento da crise gerada pelo novo coronavírus, tribunais de todo o Brasil notaram um crescimento considerável de casos envolvendo recuperação judicial e falência.
A situação delicada, decorrente da inadimplência e das dificuldades das empresas em cumprirem suas obrigações, se deve, em grande parte, às medidas adotadas para conter o avanço da Covid-19 — entre elas, o fechamento de comércios, e serviços não essenciais.
As perspectivas não são boas, levando-se em conta que a crise econômica deve impactar diretamente no número de conflitos entre devedores e credores.
Segundo estimativa da consultoria Alvares & Marsal divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo nesta quarta (22/4), por exemplo, uma queda de 3% do PIB pode gerar 2,2 mil pedidos de recuperação judicial. O boletim Focus divulgado pelo Banco Central nesta segunda-feira (20/4) previu retração de 2,96% do PIB para este ano.
De acordo com a mesma consultoria, caso a queda do PIB fique em 5% — o Fundo Monetário Internacional projetou recuo de 5,3% —, a estimativa é que 2,5 mil empresas batam às portas do Judiciário invocando a Lei 11.101/05, que trata da recuperação judicial, extrajudicial e da falência.
O número de casos, se verificado, será 40% maior ao registrado em 2016, quando 1,8 mil sociedades empresárias recorreram à Justiça — cifra até então recorde.
A situação ganha contornos pouco alvissareiros quando se considera, também, que pequenas e médias empresas de São Paulo têm, em média, disponibilidade de caixa para apenas 12 dias caso haja algum comprometimento no faturamento. Os microempreendedores são os que mais sofrem, com cerca de oito dias de caixa, de acordo com dados do Sebrae.
Recuperação judicial e falência serão os temas da discussão do quinto seminário da ConJur,sobre as regras emergenciais do Direito durante a crise. Participarão do seminário virtual, que ocorre nesta quinta-feira (23/4), o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Moura Dias Ribeiro; o desembargador Pereira Calças, ex-presidente do TJ-SP; e os professores da USP, Otavio Luiz Rodrigues Jr., Sheila Cerezetti, Marcelo Adamek e Francisco Satiro.
Colapso?
Para o juiz Daniel Carnio Costa, titular da 1ª Vara de Falências e recuperações Judiciais de São Paulo e juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, há uma inversão nos conflitos entre credores e devedores, já que os últimos são os que estão entrando com grande parte das ações, ao contrário do que normalmente acontece.
“Não são apenas os credores que tentam executar ou buscar na Justiça o recebimento dos créditos não pagos em razão da Covid-19. Os devedores também buscam o recolhimento do direito deles de rever os contratos, de alegar caso fortuito ou força maior como um motivo para o não cumprimento da obrigação ou como motivo para revisão dessa obrigação. Teremos um aumento de demanda nos dois pólos, tanto por parte de credores, quanto por parte de devedores”, afirma.
Segundo ele, o Judiciário não tem condições de absorver todos os processos que serão gerados pela crise.
“Se essas questões se transformarem em milhões de processos, o Judiciário não terá braços para lidar com todo o volume de demanda. Ao menos, não para dar resposta adequada em tempo útil. Apenas alguns poucos credores vão conseguir receber o que lhes é devido — os credores mais poderosos. A grande maioria não conseguirá receber. Os devedores, por outro lado, não terão mais renda/faturamento para conseguir pagar integralmente seus credores”, argumenta.
Medidas já estão sendo tomadas
Com o aumento de demandas no horizonte, algumas medidas já buscam criar etapas pré-processuais, desafogando a resolução de conflitos no âmbito do Judiciário.
Uma das primeiras partiu do Conselho Nacional de Justiça, por meio da Recomendação 63, aprovada em 31/3. Segundo a orientação, os magistrados devem dar prioridade à análise de pedidos de levantamento de valores em favor dos credores ou de empresas recuperandas.
A recomendação diz, ainda, que juízes devem autorizar que empresas reformulem planos de recuperação quando comprovada a diminuição da capacidade de cumprir obrigações.
Já os tribunais de Justiça de São Paulo e Paraná lançaram projetos que buscam conciliar e mediar as disputas empresariais ocorridas em razão da crise atual. O objetivo é a adoção de soluções rápidas e de baixo custo, com vistas a evitar demandas judiciais.
No caso da iniciativa paulista,
(17/4), agentes econômicos em geral — de microempreendedores individuais a empresas de maior porte — poderão solicitar audiências de conciliação pela internet.A mediação será agendada para até sete dias a partir da data do pedido e ocorrerá também de forma remota, com a participação de um dos juízes titulares das varas empresariais. A medida ficará em vigência por até 120 dias após o encerramento do sistema de trabalho remoto (ainda sem data definida) adotado pelo TJ-SP. Caso haja consenso entre as partes, um acordo com valor de sentença será homologado.
No TJ-PR, as negociações irão acontecer em um Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), criado especificamente para atender empresas em risco. O Cejusc funciona como uma espécie de passo pré-processual.
O centro começa a funcionar já nesta semana, na Comarca de Francisco Beltrão. Mas a ideia é que a medida seja expandida para ocorrer também em outras comarcas. Apenas empresas habilitadas pela Lei 11.101/05 poderão utilizar esse serviço.
No Rio de Janeiro, há a intenção de se implantar projeto semelhante ao do Paraná. Ainda não se sabe, contudo, se será um serviço inserido dentro da estrutura do Cejusc ou se será implementado um novo centro.
Projeto de lei
Além disso, foi apresentado projeto de lei (PL 1.1.397/20), que busca criar um regime de transição aplicável durante o estado de calamidade pública.
Segundo a proposta, de autoria do deputado Hugo Leal (PSD-RJ), empresas em crise financeira, cujo faturamento tenha sido reduzido em mais de 30% comparado à média do último trimestre, poderão apresentar, em juízo, pedido de negociação preventiva, mesmo que não tenham cumprido o prazo de dois anos de exercício de atividades empresariais ou tenham obtido recuperação judicial há menos de cinco anos.
Com a negociação preventiva, poderão ser suspensas todas as execuções ajuizadas por credores, por um prazo de 60 dias. Também não será possível requerer a falência da empresa durante esse período.
Sem pânico
Costa, da 1ª Vara de Falências e recuperações Judiciais de São Paulo, foi um dos membros da comissão que elaborou o projeto de Lei.
“Ele visa, dentre outras coisas, evitar que o Judiciário entre em colapso. Além disso, propõe medidas para neutralizar o descompasso entre o relógio econômico e financeiro das empresas, introduzindo uma suspensão dos atos processuais para que credores e devedores possam renegocias as suas dívidas. Assim, mantemos as empresas vivas. Nós precisamos preservá-las”,afirma.
Para o desembargador Manoel Pereira Calças, ex-presidente do TJ-SP e integrante da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial da corte, as medidas colocadas em curso — a recomendação do CNJ e os provimentos do TJ-SP e TJ-PR — servirão, por si só, para evitar qualquer colapso do Judiciário.
“O Brasil é muito forte, a economia é muito grande. Ninguém vai quebrar. Vamos encontrar soluções para que essa crise seja superada. Temos mecanismos judiciais para isso. Os magistrados irão entrar em harmonia com os agentes econômicos para lidar com essa enxurrada de liminares. Vamos cuidar das empresas fragilizadas que foram atingidas por esse fator externo”, diz, ressaltando a importância do provimento do TJ-SP.
“Não haverá colapso do Judiciário nem quebra em massa, tenho certeza. Vinte e cinco por cento dos litígios ocorrem em SP. Estou aqui concedendo liminares para que o estado não pare. O Judiciário paulista não parou, nem vai parar — com esse novo sistema organizado pela Corregedoria Geral de Justiça. A conciliação irá diminuir o número de conflitos. Com isso, SP, mais uma vez, será um madrugador nas boas experiências”.
Demanda nos escritórios
Segundo o advogado Thiago Hamilton Rufino, da Dasa Advogados, o número de consultas ao escritório por empresários, produtores rurais e empresas cresceu mais de 50% com a epidemia do novo coronavírus. O aumento dos casos, explica, invariavelmente acabam desembocando no Judiciário.
“O devedor realiza o pedido de recuperação judicial visando à manutenção da atividade empresarial, de postos de trabalho, de sua atividade empresarial, assim como a reestruturação financeira, de modo que possa efetuar o pagamento de seus débitos de forma planejada. Ele tem a intenção de efetuar o pagamento de suas dívidas; porém, a negociação extrajudicial, principalmente com instituições financeiras, é sempre complicada diante da intransigência, especialmente em relação aos descontos do valor de débito, redução de taxas de juros e prazos de pagamento”, afirma.
O advogado acredita que os conflitos podem inundar ainda mais o judiciário com o restabelecimento dos prazos judiciais e administrativos eletrônicos. Além disso, diz, dificilmente os magistrados conseguirão proferir decisões dentro do período estabelecido no Código de Processo Civil.
“Com a enxurrada de processos, a tendência é a de que os magistrados demorem mais para analisar os casos. O que é até justificado, considerando o crescimento no número de ações”, diz.
Renegociação de contratos
Diogo Ciuffo Carneiro, sócio do Bichara Advogados, diz não sentir que houve um aumento expressivo nos casos de recuperações judiciais e falências.
De acordo com ele, a maioria dos clientes estão tentando renegociar contratos, dentro e fora do Judiciário, rever prazos, preços e condições de pagamento, além de, eventualmente, encerrar alguns contratos.
“Normalmente, é o contratante, aquele com uma obrigação pecuniária, que está indo ao Judiciário. Ele não consegue mais manter sua obrigação. Isso, por exemplo, ocorre nas renegociações de contratos de locação e de energia elétrica”, diz.
Embora não veja aumento nos casos de recuperação e falência, o advogado acredita ser necessária a criação mecanismos para mitigar impactos da epidemia, preservando a atividade empresarial.
“Em momentos como o presente, o direito falimentar vai precisar ainda mais realizar seu propósito essencial. Mais empresas devem falhar em suas atividades e será necessário que tenhamos mecanismos jurídicos fortes para que a economia continue em frente”.
22 de abril de 2020, 20h56
Fonte: Consultor Jurídico